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Como os Beatles destruíram o Rock 'n' Roll?

Nestes tempos de atenção escassa disputada em frases bombásticas, suspeito que o autor à minha frente, explicando pela enésima vez o título de seu livro, começa a se arrepender de não ter ficado apenas com o subtítulo, Uma História Alternativa da Música Popular Americana. Apesar de os Beatles serem tema do último capítulo, é difícil não questionar o título Como Os Beatles Destruíram o Rock’n’roll. Cáspite, Elijah Wald! Foi com a indignação de quem sempre esperava o dia 9 de outubro para despejar leite condensado sobre o bolo de aniversário de John Lennon, que fiz a repórter calar a fã mirim que um dia eu fui.

O novo livro do historiador despertou reações variadas. Seu argumento é que a história da música popular, e da arte em geral, é monopolizada pelo gosto de críticos. No caso da música, a história oficial acaba relegando a notas de rodapé personagens importantes como Paul Whiteman, citado como influência por Duke Ellington e Louis Armstrong e, nos anos 20, o mais bem sucedido band leader dos Estados Unidos.

Wald aponta dois marcos em seu livro. O abandono da performance ao vivo pelos Beatles teria consolidado a gravação como referência primordial da música. E a evolução dos Beatles, da banda que tocava música dançável com influência negra e tinha uma base de fãs adolescentes, para uma banda de "artistas". As aspas não se destinam a denegrir a qualidade. A língua inglesa distingue "artistic" de "arty": o segundo adjetivo sugere pretensão calculada.

Entrevista: Elijah Wald - Historiador

Magazine – Como o rock’n’roll foi destruído pelos Beatles?

Elijah Wald – É uma ideia que não deve ser tomada literalmente porque o rock ainda está por aí. Até os Beatles aparecerem, a performance ao vivo era a principal parte da música. Os Beatles foram as primeiras grandes estrelas que simplesmente pararem de se apresentar ao vivo e se tornaram músicos de estúdio. Isso causou duas grandes mudanças. Desde então, quando pensamos em música popular, pensamos em gravações. Quando os Beatles começaram, e falávamos de sua chegada aos Estados Unidos, pensávamos na famosa apresentação no Ed Sullivan Show e não num disco. Eles foram o último grupo musical importante a comprovar esse truísmo. Depois deles, a principal associação da música popular é com as gravações. Em segundo lugar, o contexto racial. Quando os Beatles chegaram aqui, a música americana estava no momento de maior integração racial de sua história. A música americana, como a brasileira, tinha comportado esse processo de interação entre a tradição africana e a europeia. No começo dos anos 60, pela primeira vez, havia uma interação mais igualitária entre as duas tradições. O pessoal da Motown, Ottis Redding, James Brown, eles eram programados em shows ao vivo e de TV e o público estava mais misto. De repente, acontece a invasão britânica. E a invasão simplesmente dividiu as plateias americanas entre os fãs do rock, que se tornou todo branco, e os fãs do soul, disco e hip hop, que viraram gêneros predominantemente negros.

Magazine – Mas se você leva em conta que grande parte da plateia do rap era branca e suburbana...

Wald – Não desapareceu o público. É aí que faço a conexão com a gravação. Uma vez que a música popular passou a depender de gravação, era possível ser um tremendo fã de música negra sem nunca estar na presença de uma pessoa negra. Uma vez que tudo estava gravado, você ouvia o que quisesse sem estar na companhia especial de ninguém, fora do seu universo. E acho que foi um dos fatores na separação. Quando os Beatles começaram, eles tocavam gêneros negros e brancos. Depois deles, isso não foi mais necessário. Até os anos 50, todas as bandas tinham que tocar todo o espectro da música popular.

Magazine – Também cresci ouvindo os Beatles, mas não vivi o contexto de segregação musical que você viveu.

Wald – É verdade, mas vamos levar em conta também o fato de que o Brasil nunca fez a mesma separação. Os mais intelectuais dos grandes músicos brasileiros continuam a compor música que funciona num ambiente de dança. Os Beatles abandonaram o salão. E o rock também abandonou a dança, que ficou mais ligada a outros gêneros. Quando digo que os Beatles destruíram o rock, faço humor sobre o fato de que todos os grandes eventos acomodam ganhos e perdas. O lado vitorioso domina a narrativa e a gente para de pensar no que se perdeu. Eu não quero ser simplista, mas a ideia protestante de que a mente é virtuosa e o corpo não, pode explicar boa parte do que estamos dizendo aqui. Quando dizem que os Beatles "elevaram" o rock, não se referem apenas à música mais inteligente, mas também à música menos física. E, para mim, este foi um grande racha.

Magazine – Hoje, com o iPod, a pessoa que ouve a Beyoncé pode nunca ser exposta ao Rufus Wainright e vice-versa.

Wald – Exatamente. Acabou o mainstream. Antes, não importava qual a sua preferência, era impossível evitar um repertório popular. A outra mudança é que o repertório de grandes compositores, como o Jobim, tinha interpretações variadas. Hoje, as músicas do Caetano Veloso são mais conhecidas como as músicas do Caetano, as gravações dele definem a memória do repertório. E isso é um fator importante para encolher o mercado; se uma canção existe principalmente no momento em que foi gravada e não em centenas de versões.

Magazine – Um dos contrapontos históricos do seu livro é sobre como a evolução da tecnologia foi afetando formatos e gêneros. O que a tecnologia digital está fazendo com a música?

Wald – Se há algo que você aprende, como historiador, é que a gente sempre tira conclusões erradas sobre o presente. Neste momento, acho que sabemos menos sobre o estado da música popular do que em qualquer outro momento na história. A música escapuliu das grandes corporações. As vendas de discos não significam mais nada. Uma pessoa compra um CD e aí? Cem outras copiam? Ou serão mil pessoas, online? Ninguém sabe quem compra o quê. O rádio perdeu influência, é ouvido principalmente no carro. As pessoas ouvem as suas playlists, não a lista da estação de rádio.

Gazeta do Sul